Carmem L. Marcos
Em prosa e verso
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Não podia ser pior...
Vou contar a vocês uma história verídica, mas logicamente irei omitir os nomes dos envolvidos para preservar suas identidades e me poupar de ter que pagar direitos autorais a quem quer que seja. Vamos chamá-los tão somente de Pas Palho, Zé Mané, Des Cuidado, Aza Rado e Má Quelambança.

Portanto, se acaso alguém perceber que fez parte dessa história e considerar que ela não corresponde à exata reprodução dos fatos, considere a máxima popular na qual “quem conta um conto aumenta um ponto”. E de mais a mais, eu sou uma escritora de ficção e não uma repórter do dito “jornalismo verdade”.

Ainda antes de narrar a história, quero dar minha explicação absolutamente especulativa para tal sucessão de eventos agourentos. Praga de esposa. Não pode haver outra.

Homem costuma não dar bola para o praguejar da esposa, mas assim como praga de mãe, acredito que a praga de esposa seja uma das coisas mais perigosas que podem existir.

Então partindo para a história, há algum tempo os nossos cinco amigos vêm planejando uma pescaria no pantanal mato-grossense e agora, finalmente, conseguiram conciliar o tempo de todos para realizar esse grande sonho. Apesar das queixas da esposa do Zé Mane, que poderia ser eleita por todos os seus amigos a autêntica megera, eles começam a arrumar suas coisas.

Para obterem espaço suficiente para toda a bagagem, engatam uma carreta na camioneta cabine dupla do Zé, socam todas as tralhas de pesca nela e lá se vão eles, felizes da vida.

Ao chegarem às terras pantaneiras, tratam de contratar um experiente pirangueiro e este os leva para acamparem num dos melhores pontos de pesca da região.

Eles acabam de montar o acampamento na beira do majestoso rio, quando um botijão de gás pequeno apresenta um problema na válvula e passa a vazar gás com muita pressão. Des Cuidado rapidamente tenta, com a ajuda de alguma ferramenta, destravar a válvula do gás e nem percebe que está relativamente próximo a um lampião aceso.

Bem, acredito que vocês sejam capazes de imaginar como a coisa se processou.

Quando aquela quantidade enorme de gás atinge o lampião, ela gera uma labareda de fogo imensa que consome todo o gás em suspensão. Logicamente que isso dura uma fração de segundo, mas o fogo atinge em cheio o Des Cuidado. Além de pulverizar todos os pêlos disponíveis do pobre, fazendo-o cheirar a galinha sapecada, obviamente lhe causa uma boa queimadura, deixando-o com pedaços da blusa de material sintético grudados.

Acredito que se uma coisa dessas tivesse acontecido com um grupo de mulheres elas, após uma confabulação rápida, chegariam à conclusão que aquilo era um sinal de mau agouro e teriam voltado para São Paulo. Aliás, seria o que eu, que sou meio supersticiosa além de mulher, teria feito imediatamente.

Mas homem não, homem não acredita em sinais, superstições ou bobagens do gênero. Se o amigo realmente fosse capaz de continuar o passeio queimado, estava valendo afinal, “homem é homem!”.

E é isso mesmo que eles fazem. Como o Des Cuidado insiste que está bem, decidem prosseguir na pescaria.

No dia seguinte pela manhã o pirangueiro os leva para pegarem umas iscas e o homem, experiente na arte da pesca, acaba por pegar umas piranhas enormes.

Sim meus amigos. Piranha no pantanal não é como essas “piranhinhas” que encontramos por aqui não.

A verdade é que as piranhas enchem os olhos dos nossos amigos e como a hora do almoço se aproximava e a pescaria de fato ainda não começou, o Aza Rado decide limpar algumas para fazer um ensopado, já que piranha tem muito espinho.

E não é que piranha é perigosa mesmo fora da água gente! A bicha traiçoeira lasca uma mordida na mão do Aza Rado que lhe deixa um buraco.

Agora não tem jeito. Com o Aza Rado mordido e Des Cuidado queimado, terão que percorrer sessenta quilômetros até a cidade mais próxima para que um leve pontos e o outro, se submeta a um curativo.

E lá se vão o Zé Mane, o Má Quelambança e os dois amigos feridos.

Estando na cidade, o Zé sugere que levem uma certa quantidade de carne, pois a pescaria não tinha nem começado e assim fariam um churrasco na beira do rio, sugestão que foi muito bem recebida pelos amigos.

Amigos remendados, carne comprada, o Má Quelambança se oferece para guardar a carne numa caixa de isopor vazia que se encontra na carroceria da camioneta.

Percorrendo outros sessenta quilômetros nossos amigos voltam ao acampamento.

Ao chegarem, estão até animados com a idéia de fazerem um churrasco. O Zé vai até a caixa de isopor e...

- Má Quelambança, que foi que você fez com a carne homem? – grita o Zé.

Todos correm para ver o que teria acontecido, e o Má Quelambança tenta explicar todo sem graça.

- Ih Zé... Eu achei melhor colocar esse galãozinho de gasolina em cima da tampa da caixa para não correr o risco dela voar, mas... – ele admite – acho que ele tombou.

Realmente, o tal galãozinho havia tombado durante a viagem de volta e a gasolina acabou por corroer a tampa e depositar-se toda no fundo da caixa juntamente com a carne. Na realidade, isso eles não podem ter certeza, mas como o fundo da caixa derreteu completamente e a carne esteja toda cozida e fedorenta, podendo servir tranqüilamente como componente para alguma bomba caseira, presumem que havia sido assim.

- Minha nossa! – emenda o Pas Palho tapando o nariz - Se a gente comer essa carne não vamos pegar verme por uns trinta anos no mínimo.

Des Cuidado olha a carne desolado, tinha feito a viagem de volta ao acampamento já se imaginando a comer o tal churrasco.

- Não fiquem desanimados não! – tenta animá-los o amigo pantaneiro - Olhem que com essa carne cheirando forte desse jeito, pelo menos nenhum bicho vai chegar perto do acampamento. Acho que nem mosquito voa por aqui hoje.

Os amigos se sentam numa roda, tomados por um clima de desesperança e parecem todos vindos de algum velório.

Admito que até para alguém muito otimista, fica difícil não se abater com uma seqüência de fatos tão desastrosos, ainda mais estando de barriga vazia.

O Zé vai até suas coisas e traz umas latas de feijoada.

- Vamos comer feijoada enlatada mesmo – diz meio desanimado.

- Magina amigo! – diz o pirangueiro trazendo uma panela – Fiz o ensopado de piranha e eu e o amigo de vocês demos uma pescadinha por aqui mesmo. Tem peixe pronto pra fritar.

Afinal não está tão ruim assim. Apesar de terem começado mal a pescaria, ao menos o guia é mesmo um homem muito bom e simpático.

Os rapazes até se animam. Enquanto comem, ouvem as histórias do guia pantaneiro e logo toda essa bobagem de azar é esquecida.

A pescaria se mostra muito proveitosa daí em diante. Graças à experiência do pirangueiro, nossos amigos enchem suas caixas de peixes.

Ao iniciarem a viagem de volta, param no posto de fiscalização para a inspeção dos peixes. Estando estes dentro do padrão permitido por lei, os fiscais lacram as caixas para que os cinco amigos possam seguir seu caminho.

Agora que tudo está realmente pronto para o retorno a São Paulo, nossos amigos dispensam o guia. Logo em seguida eles decidem por conta própria não retornar pelo mesmo caminho e sim fazer uma rota diferente.

Eu peço gentilmente um aparte aqui na nossa história. Há muito tempo eu tenho uma dúvida. Por que homem sempre corta caminho percorrendo o trajeto mais longo?

Fazendo uma rota completamente diferente daquela percorrida na vinda, acabam por passar numa região onde a medida permitida do peixe é diferente daquela a que eles haviam se submetido. Pois é, no pantanal também tem disso.

Como era de se esperar, são parados por outros fiscais, os quais informam que irão abrir as caixas e realizar uma nova inspeção. E para a surpresa de nossos inocentes pescadores, seus peixes estão todos fora da medida permitida naquela região.

Eles mal podem acreditar. Parece alguma pegadinha de mau gosto.

O fiscal, um tanto arrogante, passa a afirmar que será camarada e irá liberar vinte quilos de peixe por pessoa, mais um exemplar de tamanho grande para aqueles que tiverem carteira de pescador profissional. Nossos amigos naturalmente não estão nem um pouco felizes com a idéia de deixar seus belos peixes para trás.

- Deixa comigo que eu entendo a língua desses caras – afirma o Pas Palho – eu vou falar com o policial.

O Pas Palho vai até o policial responsável pela fiscalização e inicia uma conversa em voz baixa. Em seguida eles notam o amigo esfregar o dedo indicador no polegar, num gesto típico indicando dinheiro.

Gente! O fiscal parece ser repentinamente possuído por algum espírito malígno.

- Ta pensando o que meu amigo? Ta tentando me subornar? – fala em voz alta o fiscal, fazendo ares de indignado.

A vontade dos amigos do Pas Palho é de que um enorme buraco se abra para que possam todos sumirem dentro dele. Na realidade talvez eles prefiram uma tina de azeite fervente para mergulharem o Pas Palho.

Diante dos murmúrios de escusa do Pas Palho o fiscal só faz crescer.

- Vocês acaso estão pensando que nós aqui somos todos corruptíveis? Certamente é o que vocês pensam lá no seu estado. Querem vir aqui e abarrotar caixas de peixes e nem se preocupam com a fauna, com a preservação do meio ambiente!

Toda essa cena promovida pelo fiscal acaba por chamar a atenção das pessoas que estão próximas, deixando nossos amigos numa situação cada vez mais vexatória.

- E pra não dizer que nós aqui não somos bons, eu vou liberar um exemplar para cada um de vocês. E se dêem por felizes por não levarem uma multa gigantesca!

Em meio a toda essa confusão, nossos amigos ainda são obrigados a presenciar colegas do maldito fiscal fazerem observações do tipo:

- Olha fulano, guarde aqueles três ali do canto pra mim. Adoro tucunaré.

Ou um outro que passou e avisou:

- Fulano, o capitão mandou você separar uns peixes daqueles que a mãe dele gosta.

Poderia parecer até mentira que algo tão grotesco tenha acontecido com eles, mas eu garanto a vocês que foi assim mesmo.

Ao retomarem seu caminho em direção ao estado de São Paulo, mal se falam, tamanho é o desconforto que tudo aquilo lhes causou.

Depois de tanto tempo planejando essa viagem, toda a expectativa, ficava difícil imaginar como iriam contar os detalhes para os amigos que ficaram na terra natal cheios de inveja. E pior, que peixes eles iriam mostrar?

A esposa do Zé, que não era flor que se cheirasse, havia envenenado as outras, afirmando que aquela viagem era desculpa para irem pelo mundo atrás de mulheres.

O Aza Rado, ao lembrar disso, chega a dar graças a Deus pelo Des Cuidado ter sido mordido por uma piranha. Talvez isso servisse de prova.

O Zé parece estar absorto em seus pensamentos e com um bloco de chumbo no pé. Embora ele esteja correndo demais, nenhum dos amigos tem coragem de chamar sua atenção depois de tudo que havia acontecido.

O Pas Palho, que é um homem relativamente religioso, havia colocado no meio de suas coisas um terço que sua esposa havia trazido de Aparecida do Norte na última vez que lá estivera. Como a mulher garantiu que era bento, o Pas o levava consigo para todos os lados. Mas agora a coisa é diferente, então ele achou melhor ficar com o terço nas mãos. Talvez até arriscar uma rezinha.

E é assim que eles entram na grande malha rodoviária paulista.

O Má Quelambança, que segue ao lado do Zé, tenta relaxar enquanto cada músculo de seu corpo teima em não concordar. E ele vai tentando se concentrar em outras coisas. Mas o que é aquilo no meio da rodovia?

- Pisa no freio Zé, que é um guarda! – grita o Má Quelambança.

O Zé mete o pé no freio com tudo, passando a cantar os pneus e fazendo a carreta que está atrelada ao veículo derrapar para os lados na pista.

- Minha Nossa Senhora da bicicleta sem breque! – grita o Pas Palho apertando o terço contra os olhos fechados.

O Zé corria tanto que ao conseguir parar de vez o veículo, quase lança o quepe do guarda rodoviário longe com o vácuo e certamente graças a Nossa Senhora da bicicleta sem breque consegue parar a pouco mais de meio metro do homem da lei.

O policial por sua vez, num ato de coragem talvez poucas vezes experimentado antes, permanece imóvel em sua posição com a mão erguida. Aliás, o policial militar rodoviário continua imóvel na mesma posição, mesmo depois de ter heroicamente conseguido parar nossos desvairados amigos. Agora provavelmente está se concentrando para conseguir despregar as botinas do chão.

O coitado do Zé está tão enlouquecido que desce da camioneta já erguendo as mãos para o alto e gritando:

- Prende seu guarda! Prende a gente que eu não agüento mais essa maldita viagem!

Ao ver que o policial se aproxima, o Zé já coloca as duas mãos para frente, pronto para ser algemado e passa a chorar como uma criança.

Gentilmente o policial bate a mão em seu ombro

- Por favor meu senhor, fique calmo. Estou aqui para ajuda-lo.

E parecendo mais um psicólogo do que um agente da lei, o policial vai conversando pausadamente com o Zé até que consegue acalmá-lo.

Em seguida vai até a camioneta onde os amigos do motorista parecem ter sido transformados em pedra por alguma Medusa perversa.

- Tudo bem aí pessoal? – pergunta o policial.

Os homens reagem com um sobressalto, como se tivessem despertado de algum encantamento.

- Vamos até ali no posto policial para vocês tomarem um chá, sentarem um pouco enquanto eu converso com o seu amigo – pede o policial.

Obedientes os homens vão descendo, mas o Má Quelambança permanece onde está.

- Você não vai descer homem? Não disse já tem um tempo que precisava aliviar a tua bexiga? – pergunta o Aza Rado.

- Não preciso mais! – responde o outro com o constrangimento estampado no rosto.

O amigo numa atitude solidária disfarça e segue para o posto policial com os outros.

Ao contrário do que se poderia esperar, são muito bem tratados pelos policiais. Bebem água, café, chá e comem até uns biscoitos. E depois de passarem quase uma hora contando sobre a malfadada viagem, já esperam resignados pela multa que representa o coroamento desta pescaria que certamente entrará para os anais do Clube de Carteado.

- Olhe seu Zé, vamos fazer o seguinte, eu não vou lhe aplicar nenhuma multa. O senhor teve uma experiência ruim. A viagem não foi como o senhor havia planejado e não somos nós que vamos tornar a coisa mais difícil do que ela já está. – diz o policial batendo nas costas do Zé - Na verdade nosso interesse é somente que o senhor chegue em sua casa em segurança.

O Zé está tão agradecido que dá de chorar novamente.

- Obrigado seu guarda, de coração – o Zé segura a mão do policial e já faz menção de abaixar para dar um beijo em seu anel quando se lembra que isso é coisa para Bispos.

Ele olha para o lado e percebe o Pas Palho a observar a cena com ar intrigado.

Ao se dirigirem para a camioneta o amigo não resiste.

- Ô Zé, é impressão minha ou você ía beijando a mão do guarda?

- Rapaz, com todo o respeito que eu te tenho, fecha essa boca.

Enquanto eles vão deixando o local com toda a calma, após um bom desabafo e algumas doses de chá, os dois policiais observam os homens partirem de dentro do posto policial.

- Barbosa, que bando de figuras heim?

- Nem me diga rapaz, achei que o cara ia passar em cima de mim – desabafa o outro – minhas pernas tremeram tanto que eu tive que respirar fundo para sair do lugar.

Assim, os cento e poucos quilômetros restantes da viagem transcorreram tranqüilamente e eles chegaram à sua cidade em segurança e quase inteiros, embora sem nenhum peixe. Sim eu disse sem nenhum peixe, pois aqueles exemplares que haviam sido liberados, cinco no total, foram displicentemente jogados numa caixa sem gelo na hora da raiva, portanto chegaram ao destino estragados.

É claro que a esposa do Zé não acreditou nessa história e até hoje afirma para as outras mulheres que a pescaria no pantanal foi somente uma desculpa.

Apesar disso, o pessoal do clube de carteado foi solidário e quis fazer uma foto dos cinco amigos com as tralhas de pesca e alguns peixes nas mãos.

Quais peixes? Ah, na cidade deles tem a peixaria do Sakamoto e tudo pôde ser arranjado.

Mas se você tiver a oportunidade de ir ao Clube de Carteado Ás de Ouros, olhe a foto da pescaria bem de perto e você vai notar que aparece o carimbo da peixaria no peixe que o Pas Palho está segurando.
Carmem L Marcos
Enviado por Carmem L Marcos em 02/12/2007
Alterado em 06/02/2012
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